terça-feira, 5 de junho de 2007

Um poema sobre a minha péssima memória e o desaparecimento de coisas abstratas. Como é longo, não os perturbarei mais. Escrevi em 2007.

Não Me Lembro

Um projeto de não-existir se apodera de mim.
Eu não me lembro.
Ensaio para a morte; oblívio.
Os objetos da memória, intangíveis.
Me estremeço todo com essa transparência anódina.
O que se foi vai devorando meu presente como um pai ausente.
O que não é mais se presentifica num chumbo de veludo.
Escapam-me os rastros tijolados que levam ao tesouro de minha fonte-[origem.
Presente-mar dissolve o passado-areia neste ir-e-vir maléfico, que faz
[apenas neutralizar os volteios inférteis das humildes tentativas de auto-[compreensão.
Não nos deixam lembrar, e isso não é exatamente uma ditadura.
O que é memória é cadeia.
O que é cadeia é volátil, é arbitrário.
Estrela cadente.
Conhece aquelas fagulhas de cigarro que vão se dispersando, e então
[morrem, isoladas, sem a possibilidade de estabelecerem sinapses?
Nem mesmo as estrelas, que são, sim, fagulhas, não são fagulhas [eternas.
Mas as nossas lembranças se parecem mesmo com uma usina nuclear.
Eu até gosto de me lembrar, mas não me lembro.
Desenho de infância, traçado bonito de vaguidão, invenção.
Tem um gancho sozinho flutuando na minha tentativa de ser aquele tal [todo coeso.
Mas há algo de lírico ou algo de lúgubre numa besta cega?
Se Deus é um relojoeiro cego (pasmem!),
ele criou o homem à sua imagem e semelhança?
É certo que cada coisa precisa desalojar outra nesse mundo.
Metáforas são sempre tolas, porque justamente desalojam, mas como
[ignorar aqueles castelinhos vermelhinhos de madeira?
Tento solucionar estes problemas, mas tudo o que me vem à cabeça são
[esses bloquinhos de madeira, bem afastados, voando numa substância [gosmenta e adstringente.
O que é mais curioso é que o desintegrado volta, somatiza-se.
Mais um doloroso paradoxo.
As amebas é que devem estar certas, pois são honestas e enfileram seus
[aspectos externos e internos.
O que não está presente é sempre o que mata mais.
O que some, o que se volatiliza, escolhe sempre o caminho da ascensão?
O que se esconde tem sempre um cantinho aconchegante onde pode [descansar?
O presente não tem essa possibilidade de se esconder.
Essas sombras que cercam tudo, esses vultos canalhas, essas [representações covardes!
Cafajestes de primeira, o passado e o futuro.
Lá no fundo dessa memória em branco há um nódulo-chavão.
Trata-se de uma maneira bisonha e antípoda de esperança.
A lembrança, segundo a psicanálise, pode, sim, voltar.
O homem também não olha para trás.
Prefere não fazê-lo.

2 comentários:

Anônimo disse...

ui esta coisa, este exer-cício de exis-tir é coisa por demais dolorida, fiquei pensando na ameba (numa coisa gosmenta e cósmica na verdade) que se expande, avança, e se deslocando preenche à frente e deixa atrás de si um espaço, um tempo, onde fica um lastro, um holograma de rastro cheio de informação passada.

Ciro disse...

As amebas são amorfas por dentro e por fora. São honestas. Nós o somos apenas por dentro. E olha que nossa força mais animalesca é domesticada... somso uns robozinhos... uns golens?